Professora Elizabeth Figueiredo ✯21/10/1960 ✝06/06/2021
Oi tia, benção? Estou aqui para te dizer o que não tive oportunidade de dizer enquanto você ainda estava entre nós, pois devido à pandemia, fiquei mais de ano sem te ver. Sabe tia, ser mulher nunca foi uma condição fácil, foi à custa de muita luta que conquistamos o direito de estudar, ter uma profissão, votar e de poder viajar sem a necessidade de uma autorização, por escrito, do marido ou pai. Ser mulher também é conviver com o medo, medo de ser assaltada, violentada e estuprada. E como se não bastasse, nós mulheres acima dos 50 anos, ainda temos a dependência emocional, da imagem e busca pelo príncipe encantado e assim viver feliz para sempre.
Sei o quanto você tentou e buscou encontrar esse príncipe. E em algum momento da nossa vida, ele vem, nos envolve, mina nossas reservas, quebra nossos muros e assim se instala. Na maioria das vezes não é um príncipe, é só um sapo, sabemos como é, né? Por vezes, ainda quando somos jovens, nascem dessa união os filhos que vão precisar de muita terapia durante a vida. Mas nós, tia, em pleno século XXI, ainda não temos consciência de que precisamos de ajuda profissional, pois acreditamos viver um relacionamento bom, apesar dos pesares.
E esses pesares podem acontecer em forma de restrições de circulação, amizades e profissão, que meio sem “querer” são colocadas em algum momento da nossa relação. As agressões também vêm no ‘pacote’, seja nos deixando constrangidas em situações com os filhos, amigos, familiares e até com o garçom, no restaurante em um dia de domingo, ou pelas agressões, verbais e corporais. Sei que isso ocorre independente do gênero, mas por causa da nossa cultura machista, os casos em sua imensa maioria são de vítimas mulheres. Sim, tia, nós!
É fato que algumas conseguem se livrar e com isso viver uma vida livre, longe das amarras e das agressões, mas outras pagam com a própria vida.
Assim aconteceu contigo, tia Beth, uma mulher linda, alto astral, de uma alegria contagiante. Professora, todos com menos de 40 anos que passaram por uma escola em Pequizeiro (TO) foram seus alunos. Mas no domingo, 6 de junho de 2021, aos 60 anos, você foi assassinada por um abusador, seu companheiro por 7 anos, que teve uma vida boa sustentado por você.
Nos últimos 5 anos, os seus amigos foram afastados, os contatos com a família se tornaram breves e curtos, mamãe e tia Olinda sempre me contavam que você passava por lá tal qual um beija-flor. Sempre que alguém percebia e a alertava sobre o abuso e as agressões que você sofria, essa pessoa passava a ser evitada. E a gente sempre se perguntava porquê de você, sendo tão inteligente e amorosa, não conseguia se livrar do relacionamento abusivo. Então me lembro o que minha filha me disse: “Não é que a tia Beth fosse fraca, o abusador/manipulador é que foi mais forte”. Com isso, percebi que não podemos colocar a culpa na vítima, neste caso em você. Temos que reconhecer o poder que ele, o abusador, exerce sobre nós mulheres ou não, que vai minando as nossas forças, desenvolvendo problemas de autoestima, depressão, isolamento, fobia, alcoolismo, problemas de saúde graves e muitos outros.
Aqui me lembro do depoimento da Mayra Cardi, não sei se a senhora conhecia, eu não, mas vi a entrevista em um site. “É muito mais fácil quando o abusador vem com cara de monstro, te estuprando ou te batendo, assim fica mais fácil de identificar, e talvez fique mais fácil de correr também. Mas é muito difícil quando o abusador vem com cara de príncipe, com cara de coitadinho (…) Aos pouquinhos você vai, não só caindo nos encantos, mas deixando de ser você, perdendo a sua personalidade, caindo cada vez mais nas mentiras, nas manipulações, nos quereres, e deixa de querer o que você gosta, quem é você, os seus amigos, deixa de ser quem você é, simplesmente para fazer a vontade dele, do jeito dele, imposta por ele, e com as mentiras dele”. E o seu abusador chegou assim, com cara de príncipe.
E para a maioria de nós, tia (mulheres do século XIX/XX), há mais um agravante comparado com as mulheres modernas, pois ainda é tabu, ainda é muito difícil revelar o que acontece na vida privada por medo de julgamentos externos, principalmente se vivemos em uma cidade interiorana, onde todos se conhecem. Os falatórios começam, mas fazemos questão de negar, dizer que não é verdade, que foi apenas um tombo no banheiro depois de um churrasco regado a cerveja. Nos relacionamentos abusivos, o sentimento de culpa é quase permanente e constante. Sei que, muitas vezes, você se sentiu incapaz de defender as coisas que pensava e dizia, em razão das críticas que recebia constantemente. Na verdade, é como se a outra pessoa tivesse a razão, sendo seu o critério que vai sancionar aquilo que é certo ou errado, levando a gente a se sentir sempre equivocada.
Sabe tia, o processo abusivo faz um grande cerco de culpa ao redor da vítima. Ela, a culpa, é um dos elementos mais poderosos que faz com que a vítima permaneça no relacionamento e que o abusador tenha controle sobre ela. Ele sabia, tinha muito claro quem era detentor do poder sobre você. Como todo caso de abuso, se a dependência for econômica, as suas ameaças serão focadas nesse ponto; se for emocional, as chantagens são constantes, como era seu caso. Se for o medo, as agressões físicas serão o foco, e assim por diante. O poder pode humilhar, constranger frente às demais pessoas de forma regular.
Sei que, para você não, tem mais serventia, mas gostaria de deixar aqui, nesta carta que fiz pra você e que talvez outras mulheres possam ler também, que os sinais mais comuns para reconhecer o comportamento de uma pessoa agressora são: reações violentas de ciúme, chantagens emocionais, manipulação psicológica, amarras, possessividade e controle, comportamento agressivo, violência sexual, desvalorização, desrespeito com outras pessoas, jogos de poder e, evidentemente, casos de agressões físicas. A violência doméstica pode gerar problemas físicos graves, com sequelas e até mesmo morte.
Os dados de feminicídio no nosso país são assustadores. O Brasil registrou oficialmente, em 2020, a morte de 1.338 mulheres (com alta no Norte e Centro-Oeste) por sua condição de gênero, assassinatos praticados em sua maioria por companheiros, ex-companheiros ou pretensos companheiros, como o que no último domingo, 6, te matou, antes com agressões, ele te acertou com uma cadeira na cabeça, te derrubou e, depois, atirou na sua nuca. Foi um tiro que transpassou sua cabeça saindo pelo olho, dentro da sua própria casa, onde você o acolheu e o sustentou durante 7 anos.
O Brasil aparece no quinto lugar na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS), de países com maior número de feminicídios, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e da Rússia. Mas quem se interessa né, tia? Pelo jeito, só nós mesmos, as mulheres ou os parentes das vítimas.
Sabia que o aumento das mortes se intensificou depois de 2019, tia? Pois é, sabe um dos motivos? O aumento de registro de armas no país quase dobrou em 2020, um fator que aumenta a vulnerabilidade das mulheres, como no seu caso, uma arma na mão de um abusador, ou seja, a facilidade em tirar uma vida sendo atualizada. Me entristece demais, muito mais agora que sinto na pele, no coração, a perda de uma tia tão querida, que se tornou parte nesta estatística. Ter uma arma leva a uma probabilidade muito maior de haver vítima de assassinato em casa, que geralmente são mulheres e crianças. Outro agravante é que, além da pandemia, onde o aumento do risco à mulher é mais eminente, há ainda o impacto negativo das políticas de afrouxamento das regras de controle de armas e munição patrocinadas pelo presidente.
Para terminar esta carta, deixo aqui um alerta a quem ainda está sobrevivendo neste país tão sofrido, as campanhas que a gente tem, são: “mulher que sofre violência, denuncie”. Mas o fato é que 62% delas têm medo de denunciar por medo de vingança do agressor. Na minha opinião, deveria ser: “se você conhece um homem que pratica violência com mulher, converse com familiares desse homem, eles precisam saber o que está acontecendo. E denuncie, denuncie, precisamos nos fazer ouvir, precisamos viver. Parem de nos matar!”.
Tia Beth, termino esta carta na certeza que, um dia, ainda vamos nos encontrar. Enquanto isso, seguirei aqui lutando e você, tenho certeza que Deus e Nossa Senhora de Aparecida já estão cuidando de ti. Eu creio. Eu te amo, eternamente. Fique em paz!
Da sua sobrinha,