Lia Raquel Mascarenhas Lacerda
Pedroafonsina, Bacharela em Direito e Escritora
-“Moço, eu pedi o trident fresh, o cinza”- disse aquela jovem levemente irritada.
-“Desculpa, moça. Você pode pegar aí então?”- respondeu o Senhor.
Rente à parada do ônibus aquele homem vendia balas, chocolates, chicletes e todas essas outras “bobeiras” gostosas que fazem a consciência ficar pesada e que brigam com a dieta de segunda-feira.
Era uma cena aparentemente comum. O dia estava comum. A Avenida Araguaia permanecia inquieta. No ponto de ônibus um grupo de pessoas falava do trânsito, dos atrasos, da violência, da dengue, do zika vírus, da operação Lava-Jato e da quase interminável lista da Odebrecht. Eu dialogava com eles também, só que mentalmente.
Estava apressada e o apetite tinha acabado de acordar. Em casa muita coisa me esperava. A manhã estava badalada com afazeres. O suor na minha testa e a agonia da correria me deixavam estressada. Mesmo com todos esses sentimentos de gente semi-adulta, eu me contive diminuindo os passos e acalmando a pressa da alma.
Fitei meus olhos novamente naqueles dois. O vendedor tateava as moedas de uma forma tão cuidadosa que mais parecia estar com gatinhos recém-nascidos na mão. Ele apalpava uma por uma até guardá-las no seu blusão amarelo escrito 'Sit pass'. Fiquei sem compreender o porquê daquilo, mais tarde tudo faria sentido.
Eu não sabia nada da vida daquele homem, mas tive a estranha e feliz sensação de que ele era dono de uma simpatia e amor por aquilo que fazia. Parecia sempre sorrir e cumprimentava a todos com bons dias e boas tardes sinceros. Ele não era notado. Era apenas mais um na multidão e na luta pelo pão. Um trabalhador como outro qualquer. Talvez um sonhador, pai de família.
Continuei passando por ali. Continuei observando aquele vendedor. Nunca mais vi a moça do trident. Aquele homem de meia idade continua me ensinando lições todos os dias, mesmo sem ele saber. Ele me ensinou a lutar pela vida, mesmo quando tudo ao redor limitar meus sonhos e objetivos. Ele me ensinou a não enxergar o lado ruim dos dias, dos barulhos, das pessoas, mas apenas a sorrir com os olhos. Ele me ensinou a simpatia verdadeira e necessária ante tanta hipocrisia. Ele me ensinou que enxergar vai muito mais além do que ter uma visão sadia. “Só se enxerga bem quem vê com o coração.”
Saramago, farei uso do seu “Ensaio sobre a cegueira” onde você diz que “somos metade indiferença e metade ruindade”. Que triste realidade! Na verdade, somos todos cegos.
Pudéssemos nós ter o mesmo dom que aquele Senhor da Avenida Araguaia que, mesmo não tendo a visão propriamente dita, sabe enxergar e ri com a alma e com o coração.
Aquele cego me ensinou a ver o que há muito tempo meus olhos me impediam de contemplar: a leveza da vida.